O Rádio Dom Fuas e o Jornal O Portomosense, em parceria com Gabinete de Ação Social do Município de Porto de Mós e a sua Rede Social, tem apresentado há vários anos um projeto com o nome “Histórias de Vida”, que é baseado em recolhas e divulgação de histórias de vida de alguns dos idosos das instituições da região. 

Mesmo não tendo a valência de idosos propriamente dita, a A.S.S.V. São Jorge tem feito questão de participar com 'gentes da nossa terra'.

Os testemunhos deste ano são de pessoas que, em muito contribuíram para o desenvolvimento de São Jorge, pessoas que conhecem a nossa terra e nela ainda tencionam ver muito espírito altruísta, como no tempo da sua juventude. 

2021

Maria Frazão

80 anos, natural da Jardoeira

Emília Santos

 

78 anos, natural de Chão da Feira

A história de vida de Maria Luísa Frazão é uma história de trabalho, resiliência e amor, um exemplo para os mais novos. Iniciamos o relato na altura em que Luísa Frazão, natural da Jardoeira (Batalha) hoje com 80 anos, na altura com 19 anos, deixa a casa de Artur Baptista, em Mira de Aire, onde era cozinheira, para se casar e ir viver para São Jorge, a terra do marido.

Já casados, o marido diz-lhe que quer muito tirar a carta de condução mas não tem o exame da quarta classe. Luísa Frazão não vê nisso dificuldade intransponível: Vai falar com uma professora que o prepara para o exame. Feita a quarta classe, o casal, já com dois filhos de tenra idade, ruma a Lisboa. O marido trabalha nas obras  durante o dia e à noite tira a carta.

Regressam a São Jorge e o jovem começa a trabalhar como motorista. Apesar do marido não querer, Luísa vai trabalhar à jorna «sem nunca deixar os filhos para trás». Quando este, que trabalha em Lisboa, descobre, não fica nada satisfeito mas rapidamente percebe que o dinheiro é, afinal, uma boa ajuda para o casal.

Em certo momento, Luísa sente a necessidade de alertar o marido: «Não basta ter um emprego. Só vamos conseguir amealhar alguma coisa se quando despegares vieres trabalhar comigo». Aviso feito, aviso entendido. «A parti daí trabalhamos sempre juntos e se eu tenho cinco ele quer dez», frisa. Começam a amanhar terras e a criar gado e com o dinheiro ganho decidem comprar um terreno para depois construir uma casa. O marido, apaixonado por camiões «quer uma camioneta» mas a esposa diz-lhe: «Isso virá depois, primeiro a nossa casinha». E assim é. O primeiro camião é comprado à sociedade, algo que não lhe agrada mas é um mal menor, não há dinheiro para mais.

«Entretanto, começamos a ter uns dinheiritos e ele pergunta: «O que vamos fazer a seguir?». Respondo: «Então, não querias uma camioneta?». Ele diz: «Não temos dinheiro suficiente». Eu respondo: «Não te preocupes. Vou-te ajudar, custe o que custar». E assim é. Compra uma Scania e essa camioneta dá-nos tanto dinheiro. Pagamos o empréstimo da casa e as restantes dívidas. «Tem de ir buscar uma carrada e lá vai a Luísa com ele. Nunca o deixo. Carrego muita pedra, muito tijolo, mas ajudo-o sempre. Em todos os momentos e decisões importantes onde um está, está o outro. Fazemos uma vida linda e honrada», sublinha. 

Conseguida a estabilidade financeira e com os dois filhos já casados, o marido falece com apenas 58 anos, o que obriga Luísa Frazão a nova luta. Como algumas empresas deixam de pagar, o casal entra também em incumprimento. «Para pagar as dívidas asso milhares de leitões nos meus fornos. Há muita noite em que não vou à cama. Trabalho de dia em casa das patroas e à noite asso leitões. A minha casa e um terreno são penhorados por três vezes mas, felizmente, consigo pagar tudo. Não devo nada a ninguém» recorda com um sorriso nos lábios esta verdadeira mulher de armas.

Emília de Jesus Santos, 78 anos, natural de Chão da Feira (São Jorge) conta com dois “casamentos para a vida”: O oficial, que já leva 60 primaveras, com o jovem de outrora por quem se enamorou e com quem aos 18 anos contraiu matrimónio, era ela, na altura, uma das muitas raparigas que bem cedo começaram a trabalhar nas fábricas de Mira de Aire.  O outro, com a costura, igualmente genuíno e forte, começou a despontar bem cedo. Ainda criança de tenra idade, e sentada em cima de um meio alqueire, já tentava imitar os gestos de sua mãe, costureira de profissão.


«Parece que já nasci com o dedo para a costura e a costura faz parte de mim», diz Emília Santos que  depois de quase 25 anos a trabalhar numa fábrica de confeções, em Mira de Aire, (onde entrou com, apenas, 12 anos) decidiu vir para casa estabelecer-se como costureira e serviço foi coisa que nunca lhe faltou. Aliás, ainda hoje não lhe falta. «Aqui há uns anos fazia fatos “chiques” completos, fatos saia e casaco, calças, camiseiros. Agora, dedico-me a fazer arranjos (meter fechos, apertar roupa, alargar...) e cortinados. Já tenho uma idade avançada e comecei a sentir um bocadinho as forças a faltar. Então, desde há sete ou oito anos, que decidi dedicar-me, apenas, aos arranjos e aos cortinados e foi a melhor coisa que eu fiz», sublinha.


«Hoje já ninguém quer pregar um botão» mas todos querem ter a roupa arranjada e ao seu gosto e é aí que entra em ação a nossa costureira.  A qualidade do trabalho fala por si, é a sua verdadeira publicidade, e daí que tenha muitos clientes oriundos de vários pontos dos concelhos de Porto de Mós e Batalha, e um ou outro de localidades relativamente próximas como é o caso de Aljubarrota.


Olhando para trás, Emília Santos, não tem dúvidas de que têm sido 78 anos «com muitos dias de sol mas também de vento e trovões», embora o balanço seja claramente positivo. Amada por marido e filhos, adorada por netos, sem grandes mazelas e realizada por aquilo que ainda faz na sua profissão de sempre, é, visivelmente, uma mulher feliz.


Nasceu, nas suas próprias palavras, «numa família pobre, honesta e trabalhadora» mas onde não faltaram duas coisas que considera essenciais: o carinho e a educação. «Éramos cinco filhos, vivíamos pobres mas tínhamos muito carinho dos pais. Além de nos terem ensinado o valor do trabalho, deram-nos educação. A minha mãe era a única pessoa do Chão da Feira que sabia ler e quando teve os filhos decidiu mandá-los todos à escola. Houve quem lhe dissesse que era melhor mandar as minhas irmãs e eu própria aprender a costurar porque a escola não era para as mulheres mas ela deu sempre a mesma resposta e que me ficou gravada na memória: «Eu sei ler mas quem teve a grande desgraça de não aprender a ler só sabe o que se passa na terra em que estiver».


2019

Comparando a juventude atual com a minha, tudo é muito diferente. Eu comecei a trabalhar aos 13 anos. O meu pai tinha uma oficina de tanoaria, de fabricação de serras e era esse produto que ia vender para os mercados, da Batalha, Porto de Mós, Alcobaça, Leiria, Marinha Grande e Alcanede. Quem é que hoje manda um filho de 13 anos daqui para o Cartaxo, para a feira, de autocarro? Os meus pais diziam-me para ir e para falar com um fulano amigo, que vendia tinas para as uvas. Eu ficava dentro de uma tina de uma noite para a outra e tinha que me desenrascar. Mudava de autocarro em Santarém, até ao Cartaxo. Fazia a feira durante os dois dias e regressava a casa com o dinheirinho e sem a mercadoria. Hoje não era capaz de mandar um filho meu dessa maneira. Os pais preocupavam-se, mas nós precisávamos de sobreviver. Tinha mais quatro irmãos, éramos cinco e eu era o mais velho. Não tínhamos a infância como hoje, mas também bricávamos. Tive um ano de muita brincadeira, na terceira classe. A minha professora tinha 50 alunos, na terceira tinha 17 e selecionou apenas três para ir a exame. Os restantes foram apanhar pinhocos junto à escola para vender na cerâmica ao lado. Depois gastávamos o dinheiro a jogar aos bonecos. Tirando isto, não tínhamos os brinquedos que existem hoje. Os brinquedos eram feitos de madeira. Quando havia um brinquedo especial, vinha da minha madrinha de Alcobaça, que vivia na cidade, e conseguia arranjar todos os anos um brinquedo especial. Hoje, qualquer criança tem uma sala especial carregada de brinquedos. Antes dava-se mais valor,. Tal como os chocolates, naquele tempo não tinhamos à disposição um chocolate. Levei a maior tareia da minha vida porque um dia descobri 25 tostões numa gaveta para comprar uma tablete de chocolate, sem autorização. Arranjei um colega para ir comigo e chegámos ao pé da loja e ele foi lá dentro para comprar um chocolate mas não havia. Então comprámos um cartuxo de dois quilos de rebuçados com os 25 tostões. A mãe desse colega viu que ele tinha muitos rebuçados e perguntou-lhe onde tinha arranjado o dinheiro. Foi fazer queixas À minha mãe que contou ao meu pai e saiu dali uma tareia das grandes. O meu pai só me bateu duas vezes, essa foi uma e a outra foi quando incendiei a casa. Como era o mais velho dos irmãos, fiquei em casa a tomar conta deles enquanto a minha mãe foi levar o almoço ao meu pai.  Encontrei uma caixa de fósforos e decidi experimentar. Deixei arder mas quando vi a chama, apaguei e pus o naperom na rua. A minha mãe chegou e a casa cheirava a fumo. Tive que explicar o que aconteceu e quando o meu pai chegou, recebi a recompensa: uma senhora tareia, daquelas que dá para lembrar ao fim de 80 anos. Serviram de exemplo. 

Uma das coisas que mais me orgulha é ter sido um dos criadores da ideia de fundar esta associação. Isto surgiu de uma brincadeira de carnaval, algures no fim dos anos 70, princípio de 80, não me recordo com exatidão. Por essa altura do Carnaval fazia-se sempre qualquer coisa, havia sempre um baile na sede do clube e cada equipa apresentava-se a concurso com uma máscara ou um tema qualquer. Eu, a minha mulher e mais uma equipa de malta da nossa idade participámos. O nosso tema era uma mãe branca, casada com um homem branco, que “dá à luz” em pleno salão um filho preto. Aquilo teve um sucesso tremendo. As mesas estavam repletas de pessoas em pé para verem o desenrolar da cena, porque a parturiente estava em cima de uma maca, que nós fizemos, a gritar e entretanto a criança nasce preta. Na parte de trás de quem levava a maca escrevi a giz “Bombeiros Voluntários de São Jorge”. Ganhámos o primeiro prémio do concurso, que ainda hoje a associação faz. No fim do concurso e de uma cervejas bem bebidas, eu, o pai do actual presidente da associação e mais dois senhores, fomos para o café Serrano beber mais umas imperiais. Começamos todos a pensar que não se fazia nada em São Jorge e que não havia ninguém que puxasse por isso. E lembrámo-nos da história dos bombeiros. Nesta discussão, não me recordo quem foi dos quatro que disse, combinámos que no dia seguinte íamos consultar a população de São Jorge. No dia seguinte começámos a correr porta a porta, às 20 horas. No fim do primeiro dia já trazíamos mais seis pessoas connosco. As mesas estavam repletas e aplaudiram a ideia. Foi-se indo e lá se criou o que hoje existe. Não foi fácil. Eu assisti às primeiras reuniões, mas depois, por motivos profissionais, afastei-me um bocado. Continuei sempre a acompanhar as coisas e houve muitos emperros. Inclusive o comandante dos bombeiros de Porto de Mós, na altura, criou muitos entraves para que nada se criasse aqui. Quando apareceu a primeira ambulância, que foram os emigrantes em França que ofereceram, esse senhor disse para a deixarem vir que ia acabar por ir parar a Porto de Mós, mas afinal nunca chegou a ir. E outras apareceram e ficaram aqui. Eu nunca participei ativamente, não fiz parte da direção, fui convidado mas não quis. Mas acompanhei sempre de perto, como ainda hoje acompanho, as reuniões, aniversários, estou sempre presente. Acho que houve um período em que a associação hibernou um bocadinho, mas depois criaram-se condições para isto de desenvolver e acho que está no bom caminho. A nossa ideia quando criámos isto foi principalmente para dar socorro a trabalhadores das fábricas, porque eram muitas nessa altura e tínhamos que recorrer a Porto de Mós, que era o que não queríamos. Os veículos da associação são os grandes embaixadores para dar a conhecer São Jorge ao país.        

2018

Idalina Lavrador

67 anos, natural de Pedreiras 


Idalina Lavrador sempre foi muito ligada à igreja. Aliás, é precisamente na igreja que se dá uma das estórias que aqui nos conta. Além disso, lembra o tempo em que o marido foi para a guerra, tendo ficado com uma filha “nos braços”.

A primeira vez que vi o meu marido, um rapazola a passar de bicicleta, disse para as minhas colegas: “Ai que raio de rapaz tão feio que vai ali”. Ele viu-me em cima de uma cerejeira a apanhar cerejas porque eu era pequenita e ía lá para cima. Não sabia quem eu era… Dantes fazia-se aquela rifas das comadres e dos compadres, na Páscoa, ele foi lá à loja onde punham a lista, e foi lá que tirou o meu nome. Quando me falavam que ele era do Chão da Feira, eu pensava que era muito longe, porque só andávamos a pé, não havia carros… Namorámos ainda uns quatro ou cinco anos, casàmos um bocadinho ``a pressa porque apareceu a Marta [a filha] e naquele tempo não era como agora. Agora qualquer um tem um filho seja de quem for, mas naquele tempo, quem engravidasse tinha que casar porque senão parecia mal. A minha irmã fazia vestidos de noiva e não quis fazer o meu porque eu estava grávida…

Depois de casados, ele esteve dois anos “lá fora” e eu com uma filha nos braços. Foram dois anos difíceis, estávamos sempre naquela incerteza. Recebíamos as cartas, mas havia tanta gente que recebia cartas e eles, coitados, já estavam com os olhos fechados. Foram dois anos de sacrifício e de martírio, mas tudo se passou. Sempre tive Deus ao meu lado, a minha sorte tem sido sempre essa.

Sempre gostei muito de coisas da igreja, mesmo quando andava na escola. Dantes havia aqueles cartões com santinhos e eu corria tudo por aquilo. Cheguei a ter, naquele tempo, uns 50. Ajudei aqui na terra o que pude, dei catequese, o meu marido teve sete anos na comissão da capela, sempre ajudei, fiz também parte de um grupo de zeladores da capela…

Há histórias engraçadas… Estávamos uma vez na missa, e estávamos naquela altura em que alguém chama “Samuel! Samuel!Samuel!”, chama três vezes, e um miúdo muito depressa: “Estou aqui”. Tudo se começou a rir e naquele tempo, a gente rir-se na missa… Até o padre fez um esforço para não se rir. E eu disse assim para ele: “Tens que te calar”. e ele logo: “Então mas não me estavam a chamar?”. Ainda hoje vê a minha filha, chama-lhe sempre catequista,cumprimenta-a sempre.

Estou reformada mas tenho sempre que fazer, ali atrás tenho uma galinhas, uns coelhos, uns cães, tenho que tratar das coisas… Quando me sento faço renda e depois faço “para dentro” também porque adormeço. Gosto de ler, gosto da ginástica, faço umas caminhadas, tenho que andar mesmo, ajudo às vezes a minha filha a passar a ferro, gosto muito de teatro, gosto de me rir.

Somos velhos como os trapos, mas também são precisos, a melhor coisa para limpar são os trapos.

João Francisco Ferreira

86 anos, natural de São Jorge


João Ferreira e mulher viram-se com uma filha doente nos braços, sem saber o que lhe fazer. Depois de gastarem todas as suas economias na procura da cura, acreditam que foi um “milagre” que a salvou.

Fui criado com os meus avós até à idade dos 7 anos, numa casinha que ficava por trás da capela, hoje é um prédio, que é do meu primo.

A minha avó não gramava a minha avó. Vim de casa dos meus avós para casa dos meus pais, aqui andei na escola. Mas não me deixaram fazer a terceira classe, o que fiz foi em adulto.

Comecei a namorar aos 16 anos e a minha mãe também não gostava da minha mulher. Mas eu disse: “Eu tenho que casar e viver com quem gosto”. Então ela começou a não me gramar a mim também até que um dia me picou nas costas com uma navalha.

Casei-me, apareceu a minha filha, não era saudável e aí foi o pior. Na vida de casados temos passado bocados bons, bocados ruins, mas foi péssimo devido ao nascimento da minha filha, porque ela era doente, nasceu sem glândulas, um trambolhozito que aqui apareceu. Não tivemos médicos à altura que adivinhassem a doença dela.

O primeiro médico não sabia o que lhe havia de fazer, comeu o dinheirinho todo que tínhamos. Mas também nunca tive um pai ou uma mãe que me ajudassem. Os meus pais tinham umas 30 fazendas, mas não havia dinheiro.

A minha mulher um dia foi a Leiria, ao médico e veio uma senhora que lhe disse: “A senhora vem a chorar?” A minha mulher contou-lhe e a mulher indicou-lhe outro médico. 

Decidimos ir lá, fui ver o dinheiro e pensei que talvez chegasse para tudo. Agarramos no dinheirinho e fomos lá com ela. E não é que o homem acertou com a doença dela? Receitou-lhe uns comprimidos que custavam 8 700, nunca me esqueci. Já tínhamos gasto tanto dinheiro e nada funcionava, quando a minha mulher viu aquilo disse. “Se os comprimidos caros não fizeram nada, agora com estes, com certeza que morre”.

Num dia 13 - já não sei dizer o mês -, eu estava nesta divisão que era na altura a cozinha, deitei-me ali e a minha mulher foi a casa do Carlos, que só ele é que tinha televisão, assistir à missa dos doentes. A garota estava entre as minhas pernas porque não se equilibrava, qual não é o meu espanto quando ela se levanta e vai para o quarto. Fui a correr dar a notícia, contar o que tinha sido, tudo veio ver. A partir daí, começou a conseguir sentar-se, procurou andar e não houve mais problemas nenhuns.

A minha mulher já andava com os nervos, caiu-me também. Foi a origem de ela estar como está. Todos os dias, a seguir ao almoço vamos beber a bica de mão dada. Desde que a minha mulher está doente, eu digo: “Enquanto ela cá estiver, não lhe há-de faltar nada daquilo que ela gosta. Não quero ter remorsos nenhuns na minha consciência”.


2017

Maria Horta Sousa

Idade: 74

Profissão: Empregada de balcão

Natural: Milagres Leiria

“Fui empregada aos treze anos”

Nasci nos Milagres. Os meus pais trouxeram-me para São Jorge aos dois anos, porque o meu pai veio trabalhar para o Lena, carregar cerâmica. Vivo em São Jorge há 72 anos.

Então, a partir daí, a minha mãe teve oito filhos, a contar comigo. Foram quatro filhos e quatro filhas. Morreu-me uma irmã com cinco anos.

Eu fui empregada com 13 anos, numa cerâmica. E trabalhei lá 10 anos, ou 11, saí de lá grávida. Vivi mal nessa época, porque não havia manteiga, não havia marmelada… Havia mas era só para quem tinha [dinheiro].

A minha mâe passou muitas vezes fome por mim, não fui eu que passei fome. Tudo o que havia de bom era para os meninos que tinham nascido. Se havia um bocadinho de carne a mais, era para o pai que andava a trabalhar, nós estávamos a crescer, não precisávamos de comer. O pai é que andava a trabalhar e era encarregado, ele estava a puxar pelo corpo. Então passei um bocado de má vida, de mau viver. Não tínhamos liberdades como há agora. Liberdade de expressão, liberdade de sair, liberdade de nada, era só trabalho.

Só havia um par se sapatos em casa. Se a minha mãe fosse à missa ao domingo, ela calçava-os e eu não tinha calçado, por isso já não saía de casa durante o dia.

Trabalhava, chegava a casa e tinha que lavar roupa, no tanque à mão. Não havia máquinas de lavar. Tinha que passar a ferro a brasas, não era um ferro eléctrico. Não havia electricidade, não havia televisão. Não havia nada destas coisas e eu passei por isso tudo.

Passei a época de Salazar e, para mim, foi a melhor época. Além de ter passado muitas dificuldades a trabalhar e não saber como é que ganhava. Durante 10 anos trabalhei ao pé do meu pai e nunca recebi o meu ordenado, nunca recebi férias, nem nada, nunca soube o que ganhava. O meu pai é que recebia o ordenado.

A partir do 25 de abril, há liberdade a mais. Há muita fartura, por isso há tantos fogos, há liberdade a mais. As pessoas não trabalham, estão aí no fundo de desemprego… E eu trabalhei 42 anos, a descontar, e não tenho a reforma desses 42 anos. Tenho reforma de 39 anos, a Segurança Social lembrou-se que havia de ficar lá com mais três anos.


Maria Justina Vieira da Cruz Ferreira

Idade: 78

Profissão: Doméstica

Natural: Maceira

“A minha vida foi trabalhar no campo” 

Nasci na Maceira e estiva lá até aos 24 anos e depois vim para aqui servir, ali para uma casa em cima, já lá não mora ninguém.E depois casei. O meu marido já era daqui, desta casa, embora fosse arranjada de novo.

Tive dois filhos, um morreu e o outro está cá e é muito boa para mim, graças a Deus. Não sabem o que é que me hão-de fazer, nem ela nem o marido. O meu marido está ali na cama, acamado.Não tive má vida. Andei na escola, empreguei-me na fazenda, fui sempre camponesa E depois vim para aqui servir para uma casa. Vi o meu marido, gostei del, comecei a “contender” com ele já que ele não “contendia” comigo e pronto, e casámos. Quando comecei a namorar com ele, ele já era duro. Ele é mais velho que eu 14 anos. E eu fui sempre muito de ninguém me tocar. E não me tocou senão quando já era dele. Já era dele, já não podia dizer que não, olha…

Tive dois filhos. Um esteve na tropa em Guimarães. E depois, pronto,Deus qui-lo para Ele. Ele também era muito maluquito assim a andar de carro, pronto… Só bateu uma vez, partiu o carro a meio e partiu-se a ele todo. Tenho uma filha que está aqui casada ao pé de mim, não tem filhos. Não são melhores para mim porque não podem, se eles pudessem comigo traziam-me ao colo. Só tenho que dar graças a Deus pale vida que me tem dado.

Excursões é muito raro porque tenho a vida presa, que tenho o marido acamado. Eu já dizia, quando éramos mais novos, nunca fomos os dois. Ele ía para onde ele queria e eu ía para onde eu queria. Só somos casados em casa.

O que é que eu posso desejar mais de Deus? A saúde. Também não tem sido ingrato para mim, tem-me dado sempre boa saúde. 

Ora bem, os meus pais eram fazendeiros e mal eu vinha da escola, já lá tinha um papel escrito na porta para ir ter com eles à fazenda. E foi sempre a minha vida, foi trabalhar no campo.Casei-me, camponesa fui. Do campo faço vida. 

Depois vim servir para uma casa ao cimo da ladeira. E o meu marido morava já aqui nesta. E depois ele passava e nunca dizia nada. E eu comecei a “contender” com ele. Primeiro perguntei lá na casa como é que ele se chamava, disseram-me que era António. E eu, quando ele passava de bicicleta, estava ali ou na varanda, ou à janela, tinha aqueles bocados para mim. Ela ía com a bicicleta à mão, porque era a ladeira a subir e eu comecei-lhe a dizer: “Adeus, senhor António”. A primeira vez ele até se assustou. Virou-se assim para mim muito espantado. E depois começou-me a dizer: “Adeus menina, adeus menina”. Depois começou a ir ter comigo às fazendazitas, aos quintais e tal. Ía assim muita vez para o quintal. Até que agarrou-se o namoro e casámos mais tarde.

2016

Miguel Cunha foi fogueteiro e trabalhou nas Indústrias Lena a construir “fornos de pez”, de que era especialista, sendo que também trabalhou na serração de madeiras da mesma empresa. Também Maria Alice Guerra, natural de Angola, conta que por fugir da escola “pela janela”, levou tal tareia que tanto ela como os irmãos e a criada gritavam e, foi a partir daí que veio para Portugal.

Miguel Santos Cunha

Idade: 80

Profissão: fogueteiro  

Natural: São Jorge

“... envelope com quase o dobro do ordenado.”

Comecei a arte de fogueteiro com o meu pai, mas eu gostava de outras coisas e um dia disse ao meu pai que não trabalhava mais nos foguetes, mas ele não gostou da conversa dizendo que eu era o seu braço direito, mas eu respondi-lhe que o ajudava na mesma.

As cerâmicas que havia aqui à volta andavam a desafiar-me. Então fui para uma cerâmica e onde trabalhei mais tempo foi nas Indústrias Lena, onde estive 46 anos. Aqui fui forneiro, chefe de forno e fiz outros serviços na mesma firma, porque eu “encarrilhava com todos os trabalhos”. Fui ainda para a carpintaria.

Entretanto foram-lhe dizer que estava ali um rapaz que era uma especialidade a fazer fornos de pez, que era eu. Então falaram comigo e fiz lá dois fornos e vinha muita gente que não me largava e então, o patrão, o sócio Dr. Roque e o engenheiro Charters onde é que eu tinha tirado o curso.

Primeiro fazia pirotecnia, depois serviços de cerâmica e então disseram-me que eu passava a ser o chefe de tudo e que ia ganhar mais ordenado. Vai trabalhar com a garlopa, com o topia, com a roçadeira e com a plaina, se não te importares, disseram eles.

Quando acabei de fazer os fornos de pez vi que a lenha era de cepos já a desfazerem-se, que vinham de um pinhal já muito velho. Eu disse-lhes que estavam a trabalhar mal porque o carvão produzido, não valia nada porque a lenha desfazia-se com facilidade e não dava pez. Então eu fazia uns quadrados, punha-lhes uns sacos, parecidos com os sacos de cimento, e quando o forno estava cheio de alcatrão lançava-lhe o fogo e então sim. Aquilo servia para os sapateiros fortalecerem o fio com que cosiam o calçado.

Um dia o patrão chegou ao pé de mim, colocou-me as mãos nos olhos e disse “apalpe lá o seu bolso”, era um envelope com quase o dobro do ordenado. A gente recebia à quinzena, e então ele disse, “mestre Miguel, o que diz respeito ao pez, você nem queira saber as encomendas que temos, até para o estrangeiro, não há pintura que rebata o pez”. 

Maria Alice Guerra

Idade: 87

Profissão: Professora aposentada

Natural: Benguela

“... já na segunda classe a professora batia…”

Eu tinha mais três irmãos e era a mais velha na altura. O meu pai tinha vinte anos a mais que a minha mãe e pensou sempre que ficava só com estes filhos, em que eu era a única rapariga. Chamo-me assim porque o meu pai sempre disse que a primeira filha que tivesse, tinha de se chamar Maria Alice.

O meu pai era construtor e tinha os operários todos, pedreiros, carpinteiros e isso, mas o que ele fazia mais eram pontes sobre rios.

No primeiro ano do colégio vacinaram-me e correu mal, porque eu estive com a perna em cima dum tabuleiro, até pensavam que tinham de ma cortar; no outro ano, já na segunda classe, a professora batia, ou melhor, mandava chamar um rapaz da escola dos rapazes e ele é que nos batia.

O meu pai dava o dinheiro da mensalidade à rapariga, que era a criada, que me ía levar à escola. Um dia eu disse para me dar o dinheiro, ela respondeu que não, e eu disse-lhe para mo dar que era só para andar com ele, que depois lho dava.

A criada então deu-me o dinheiro, e eu com outras, fomos comprar rebuçados, chocolates e tudo o que nos veio à memória e que queríamos, mas o meu pai não sabia. A professora chamou-me e disse para ler a lição tal. Como eu não tinha lição nenhuma, fiquei muito calada. A professora disse para lhe levar o livro e quando ela o viu e viu que estava tudo riscado e não se conhecia nada, chamou a outra professora, para que mandasse um menino com força.

Enquanto ela foi à outra escola, a Maria Alice viu que havia uma janela aberta, saltou por ela e fugiu para a rua. O meu pai estava no café e nada sabia, mas a professora foi ao café falar com ele e disse-lhe, “olhe que a sua filha fez isto assim assim e contou-lhe ”. Então, quando o meu pai chegou a casa, foi um sarilho.

Mandou a minha mãe para a cozinha, que não ficava junto à casa, mas sim noutra parte do quintal, e bateu-me tanto tanto, que eu gritava, os meus irmãos gritavam e a criada também gritava. Disse então “já sei o que te hei-de fazer, vais conhecer Portugal que é a minha terra”.